O Historiador norte-americano Ibrahim Sundiata, expõe, em entrevista ao Jornal A Tarde, da Bahia, sua visão sobre o racismo e a diferença entre as práticas e condições raciais do Brasil e Estados Unidos.
Ibrahim Sundiata: "Estamos cansados da polícia matando pessoas sem armas, e porque estamos sofrendo mais com a pandemia" | Foto: Adilton Venegeroles | Ag. A TARDE
Ibrahim Sundiata, 75, nasceu numa época em que havia segregação racial nos EUA. Quando criança, chegou a frequentar escola apenas para negros. Professor emérito da Universidade Brandeis, onde ensina história da África Ocidental, o norte-americano está em Salvador desde fevereiro e esperava receber visita de familiares. A pandemia do coronavírus inviabilizou o desejo. Por aqui, sabe dos efeitos da crise sanitária e dos protestos antirracistas que agitam o mundo desde o assassinato de George Floyd, no dia 25 de maio, em Mineápolis. Ele conhece o Brasil desde os anos 1980, quando veio por sugestão do também historiador Michael Turner, que trabalhou na UnB, na Fundação Ford no Brasil e sempre esteve envolvido com o movimento negro. Voltaria depois com uma bolsa Fullbright para ensinar história africana, em inglês, no mestrado de ciências sociais da Ufba, em São Lázaro, na Federação, onde morou por seis meses. E passou outras temporadas por aqui como turista. Quando se aposentou, em 2013, queria morar em Salvador, mas precisou voltar a Boston. Especialista na história da Libéria e da Guiné Equatorial, é autor de Guiné Equatorial: Colonialismo, Terror de Estado e Busca de Estabilidade (1990), entre outros.
Como se dá essa articulação entre a
pandemia, o assassinato de George Floyd e o que está se desenrolando a partir
disso?
Estamos cansados,
estamos angustiados porque ele não é o primeiro. E depois dele, você sabe,
temos outras pessoas [Rayshard Brooks, de 27 anos], e antes também, como o
adolescente Trayvon Martin [26 de fevereiro de 2012]. Foi um escândalo. A
Flórida tem uma lei de impunidade: se você sente que tem perigo, você pode
atirar. Estamos cansados! Isso foi há oito anos e a cada ano estamos dizendo
‘nunca mais’. Agora, temos a pandemia e os afro-americanos estão sofrendo mais
que a maioria da população. Há muitos fatores: hipertensão, diabetes, alguns
moram em desertos de comida [food-desert] e não têm supermercados por perto.
Então, comem hambúrgueres, McDonalds, há muitas pessoas obesas, e são fatores
de risco com a pandemia. Estamos cansados da polícia matando pessoas sem armas,
e porque estamos sofrendo mais com a pandemia porque somos muito mais pobres
que os brancos depois de tanto tempo, somos 30% da população das prisões. Isso
é terrível. Então, tem a pandemia e tem essa condição preexistente.
A revolta contra os assassinatos tem
levado multidões às ruas pelo mundo, questionando a ação da polícia e também a
história. O que pensa a respeito?
Como historiador, não acho que
podemos esmagar o passado, essa coisa das estátuas, acho que não podemos fazer
isso. Sempre falei que era necessário mudar estátuas de traidores, os generais,
etc., da Guerra da Secessão, porque eram traidores e também a favor da
escravidão. Sempre falei isso, e as pessoas diziam “ah você é historiador,
temos que falar sobre emprego e coisas mais reais, deixe isso, eles estão
mortos”. Agora mudou tudo. Algumas pessoas estão atacando algumas estátuas. Mas
o general da confederação é bem diferente do que Thomas Jefferson e Washington,
para mim. “Mas eles eram escravistas...”. Então, você tem que derrubar toda a
história da República. Você pode reclamar, mas o Estado nunca vai mudar o nome
da capital, Washington. Isso, para mim, é um pouco infantil. Vamos pensar na
história, é uma história triste, que abusou nossa gente, mas ao mesmo tempo, we
don’t want to throw the baby out with the bathwater [não queremos jogar o bebê
com a água do banho]. Quero escrever um artigo e depois um livro sobre a
memória coletiva norte-americana.
Há muitas lacunas?
Ano passado teve uma grande
celebração, controversa, sobre o Projeto 1619, no New York Times, por ocasião
dos 400 anos da chegada de um navio com escravizados na Virgínia. A jornalista
Nikole Hannah-Jones ganhou o Prêmio Pulitzer. Ela disse na rádio educativa que
foi a primeira vez, e essa é a narrativa americana que quero examinar. Eles têm
a história deles, nós temos a nossa dor. Acho que a luta do negro tem a ver com
a luta do negro nos EUA. Como posso explicar que a escravidão nos Estados Unidos
foi uma escravidão muito mais racista do que no Brasil? O Brasil foi mais duro
em condições porque é mais pobre. Raça nos Estados Unidos é bem diferente do
que no Brasil.
Em que sentido?
Quem é negro nos Estados Unidos? Nos
EUA, qualquer pessoa pode ser negro. Negro não tem nada a ver com fenótipo,
nada. Tem a ver com sangue. A ideia que uma gota de sangue negro é uma
poluição. Passing foi a situação de uma pessoa branca de pele, mas com um
ancestral negro, fingir ser “branco”. Geralmente, uma loira que depois de algum
tempo vai descobrir que a bisavó foi uma negra, e é uma tragédia! Aqui, no
Brasil, isso seria bobagem, mas geralmente uma pessoa de cor sofre preconceito
lá e aqui. A diferença é que lá existiam leis de segregação. Algumas escolas,
dependendo dos estados, faculdades, restaurantes separados, tudo isso. Quando
criança fui mandado para uma escola segregada, mas os vizinhos da minha família
eram brancos, eu me lembro caminhando com eles e num determinado ponto eu ia
para a minha escola e eles para a escola deles. Isso foi abolido, mas no início
foi assim. Eu nasci num tempo de segregação, que foi proclamado ilegal pela
Suprema Corte quando eu tinha 9 anos. Como criança, meus pais sempre falaram de
forma indireta para proteger o filho, mas eu sabia que o mundo foi dividido,
claro. Outras pessoas sofreram muito mais que a minha família, muito mais.
No ano que vem será o centenário do
massacre de Tulsa, considerada a Wall Street Negra, no Oklahoma, mostrado no
ano passado na série Watchmen, e muitos admitiram não saber o que houve...
O passado nosso foi uma coisa que
ficou mais ou menos esquecido, ou foi negado. Então, Tulsa, eu não sabia nada.
Eu como historiador da África, como historiador, como cidadão, negro, não
encontrei isso na escola. Agora estamos recuperando o passado e o que
aconteceu, mas estou tentando formar uma história verdadeira, com todas as
coisas ruins, porque o país tem coisas terríveis, e também coisas boas.
Em Salvador estão falando sobre a
estátua de um traficante de escravos, o português Joaquim Pereira Marinho, que
está no Hospital Santa Izabel (Nazaré)...
Acho que temos algumas estátuas que
têm que ficar, no mínimo, num museu; em público, não. Mas cada país e
comunidade deve ter com comitê de cidadãos para falar a respeito. Agora, nos
EUA, muitos estão contra a estátua de Colombo. Você pode ler que Colombo matou
indígenas, foi aproveitador, cruel, igual aos bandeirantes aqui no Brasil, mas,
para mim, seria melhor colocar uma placa explicando: ele não descobriu nada,
ele chegou aqui para fundar uma civilização onde uma civilização já existia,
nada de fundador. Acho que isso é uma questão geral para a sociedade, mas, com
ignorância, vamos fazer coisas terríveis. Semana passada, um grupo dizendo que
era do Black Lives Matter atacou uma estátua de Tadeusz Kosciuszko. Era um
polonês que foi um dos primeiros abolicionistas, mandou carta a Washington,
“você tem que dar liberdade aos negros”, mas as pessoas na rua não sabem. Perto
da Casa Branca tem estátua de Andrew Jackson [7º presidente dos EUA], matador
de índios, o presidente favorito de Trump. Ninguém atacou a estátua dele. Ah,
por favor.
E as lacunas sobre a Bahia?
Também aqui na Bahia é muito
importante estudar o passado, esse lugar tem uma história triste como porto
atlântico negreiro, acho que vocês precisam de um museu, mas não somente da
cultura, não somente do candomblé, mas desse vínculo com a África, e também
esse vínculo foi uma coisa triste, para enfrentar esse passado. Mas não para
negar o candomblé, acarajé, e tudo mais. A Bahia existia por causa do comércio,
e grande parte do comércio foi o tráfico negreiro. Adoro a canção Aquarela do
Brasil como música, mas não como história. Não estamos tirando a mãe preta do
cerrado.
Há quem critique o debate sobre
racismo no Brasil alegando que ele ficou ‘americanizado’. E muitos não
reconhecem a própria negritude.
Alguns lugares têm cotas, acho que
pode ser uma coisa boa, ação afirmativa, como vocês chamam, porque ter uma
sociedade como essa, em que no nível mais alto todos são brancos e lá embaixo é
completamente negro, isso não é justo. Alguém falou: “Você sabe que Salvador
não tem prefeito negro”. Acho que tem razão, mas as pessoas têm que votar, se
organizar e pensarem o que querem, têm que ter uma meta. Mas não é somente uma
questão de cor, ou de identificação. Um amigo falou ao telefone comigo: “Tenha
cuidado com black faces in high places” [rostos negros em posições altas],
dizendo que somente um negro num posto alto não vai resolver nada. Isso pode
dar orgulho até um ponto, mas se não está dando comida na mesa... Temos que
misturar política de identidade e política de classe, porque senão vamos chegar
a um ponto que teremos muitos negros importantes, mais do que agora, e posso
voltar aqui e encontrar um prefeito negro e pessoas na mesma miséria. Isso não
é um progresso.
Isso tem a ver com o fato de o Black
Lives Matter ter começado como movimento em 2014, com a morte de Michael Brown,
e Obama ainda estar na presidência?
Acho que ele foi importante em abrir
um espaço para outros negros e também muito importante em falar de uma
narrativa de progresso, ao dizer “do início até mim sempre foi uma luta”.
Porque temos outra narrativa que diz “nada no país foi ruim desde o início”. É
importante focar atenção nos avanços porque quando eu nasci seria impossível
pensar alguma coisa assim, e no futuro será ainda mais possível, estamos no
caminho. Ao mesmo tempo, temos essa reação. Por causa da reação temos Trump,
muitas pessoas que dizem ‘vamos voltar ao passado, make America great again, o
país caiu com um presidente negro, vamos voltar aos anos 50, com prosperidade,
com cada população no seu lugar’... no seu lugar! Na próxima eleição, em
novembro, acho que Trump vai dizer, ‘vocês querem continuar com esse
experimento de Obama ou vocês, a maioria, pode ficar com os anos do seu avô, os
anos de Eisenhower, todo mundo com emprego, com carro’... A próxima eleição vai
ser uma briga monumental, não apenas para os Estados Unidos, mas para países
como o Brasil.
O antropólogo Kabengele Munanga disse
ao A TARDE que “o racismo brasileiro é um crime perfeito. Além de matar
fisicamente, mata a consciência das vítimas”. O senhor concorda?
Sim e não. É possível dizer que um racismo óbvio vai fazer você trabalhar mais contra o racismo. Isso é verdade. Quando você tem uma sociedade que é muito fluida, é muito mais difícil enfrentar o racismo. Ao mesmo tempo, o racismo é muito inteligente, é um bicho muito inteligente. Qual a minoria maior nos EUA? Os negros agora estão no segundo nível. A minoria maior agora são os latinos. Tínhamos uma colônia que era uma colônia negra no início século 19, Porto Rico, e quando os EUA conquistaram Porto Rico da Espanha, dividiram a população em brancos e negros, mas no pós-guerra, com os aviões, chegaram muitos pobres porto-riquenhos, e o governo de NY e outros estados começaram a dizer ”vocês... uhm”, era outra categoria. Nixon disse ‘vamos criar uma supercategoria, do México até a Argentina, hispânicos’. Então, dividir e dominar é a regra. Os latinos estão enfrentando o Black Lives Matter. Mas o sistema diz ‘vocês não são como eles’. Nas nossas leis, uma pessoa pode escolher uma raça. A maioria dos latinos não querem escolher uma raça e não escolhem. Agora você pode escolher até quatro raças. “Ah, isso é coisa para negros e brancos, isso é briga deles”, compreende?”. Isso é um jogo, e isso é muito inteligente. Porque se esse governo disser, como antigamente, que qualquer gotinha de sangue negro vai proclamar você negro, vamos ter maioria negra. Isso é inteligente. Se temos uma terceira categoria, é diferente, não tem nada a ver com negro nativo, você não é igual ao branco, mas tem fluidez, como Jeniffer Lopez. Ela é branca? Ela pode ser, mas ela pode ser uma pessoa de cor, depende. O indivíduo pode jogar com isso, o poder pode jogar com isso. Agora, que a máscara está tirada com o Black Lives Matter, todo o povo do país tem que enfrentar isso.
Quais as consequências?
É muito importante evitar isso, é
controle social, porque eles são pobres, às vezes mais pobres que os negros, e
a única coisa que têm é que não são negros, não negros, dizem, mas são mais
pobres. Temos que evitar isso, porque não devemos dar o controle aos outros.
Mas também temos a categoria classe, porque há brancos pobres que têm
consciência antirracial e temos que incluí-los também, senão vamos provocar uma
batalha que não temos como ganhar. A gente tem pessoas da ultradireita que
querem isso, a ‘Segunda Guerra Civil’. Eles têm armas, milícias, e estão
procurando, procurando, procurando. É uma armadilha. Estou aqui no Brasil e
voltarei à minha terra para votar.
Fonte: A Tarde.