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RACISMO - ATROCIDADES DA COLONIZAÇÃO BELGA, NO CONGO.

 


Localizado na requintada cidade de Tervuren, a uma curta viagem de trem de Bruxelas, o Museu Real da África Central é uma atração turística recomendada por inúmeras fontes de informação sobre a Bélgica. Nos últimos anos, porém, o palacete construído em 1910 se transformou num ícone do confronto de ideias que marca as tentativas belgas de reexaminar sua participação na chamada colonização africana do século 19.

Ao mesmo tempo que uma determinada exposição promoveu ciclos de debates e pesquisa com críticas sobre a participação belga na colonização africana, o site do museu é permeado pela versão idealizada de uma empreitada cujos tons de crueldade e insanidade ainda têm reflexos em vários aspectos da vida africana. Contradição expressada, por exemplo, por uma estátua onde há um homem negro aos pés de uma escultura dourada com traços ocidentais.

 O ponto focal da polêmica atende pelo nome de Estado Livre do Congo, batismo bonito dado a uma horrorosa empreitada escravagista e genocida promovida entre 1895 e 1908 pelo então rei belga Leopoldo II.

Foi por lobby do monarca que, em 1876, Bruxelas sediou uma conferência geográfica internacional na qual os anfitriões propuseram o que no papel seria uma expedição multinacional, humanitária e científica para explorar a região da África Central, quase desconhecida.

Na prática, Leopoldo II estava lançando os alicerces da apropriação de um latifúndio cuja extensão territorial superou em dezenas de vezes a da Bélgica, passando por cima das populações locais.

O problema é que Leopoldo II era um monarca constitucional. E o governo belga, sensatamente, não quis se envolver com aventuras na África. O rei, então, resolveu o problema de maneira insólita. Se a Bélgica não queria o Congo, ele assumiria a região, como se se tratasse de uma enorme fazenda — em vez de ser colônia de um país, Leopoldo transformou a área em sua propriedade particular.

De olho em produtos como o marfim e a borracha, o rei foi aos poucos criando uma rede de patronato e influência que na Conferência de Berlim (1885) teve papel preponderante nas discussões da partilha europeia da África. No ano seguinte, Leopoldo II foi agraciado não apenas com uma imensidão de terras de 2 milhões de km², mas também com o controle sobre a vida de milhões de pessoas.

Tudo isso diante de uma série de compromissos, como lutar contra a escravidão e promover o livre comércio na colônia, incluindo a isenção de impostos sobre produtos importados.

Em menos de dez anos, a realidade já estava marcada por uma enxurrada de decretos que não poderiam violar mais os termos dos acordos firmados em Berlim. Além de confiscar terras e aldeias inteiras de congoleses, o rei fez da escravidão a principal forma de trabalho em seus domínios.

Logo Leopoldo II aumentaria a carga de tributos e literalmente se tornaria dono de toda borracha e marfim extraídos no Congo. Suas vontades foram garantidas com a ajuda da Força Pública, um temível corpo de soldados reforçado por mercenários.

Quando não coagia líderes tribais a fornecer escravos para as atividades extrativistas, invariavelmente sequestrando mulheres e crianças como forma de garantir o cumprimento de cotas de produção, a Força Pública tinha carta branca para retaliar casos de desobediências e revoltas. Assassinatos, amputações, estupros e saques eram comuns em casos de cotas não cumpridas.


Tentativas de resistência mais veementes eram contidas com violência tão brutal que contribuiu generosamente para um total de mortos estimado por acadêmicos em 8 a 10 milhões de pessoas, ou o equivalente a quase metade da população congolesa de então.

"Como muitas atividades imperialistas, a colonização belga começou como um mero exercício de pirataria. Mas os níveis atingidos pelo terror nas populações locais, a contribuição da burocracia estatal e as estimativas de mortes fazem com que os eventos do Congo sejam comparáveis às atrocidades do Nazismo e à Grande Fome da Ucrânia, arquitetada por Stalin, por exemplo", diz o historiador Tim Stanley, da Universidade de Oxford.

A afirmação de Stanley está longe de ser apenas um reflexo de revisões históricas. Denúncias sobre atrocidades no Congo já tinham surgido em número e intensidade suficientes no final século 19.

Relatos de missionários, ex-interventores a serviço do rei e, especialmente, a publicação do seminal romance O Coração das Trevas, cuja inspiração o escritor Joseph Conrad não escondeu de ninguém estar em eventos ocorridos nos domínios de Leopoldo II, deram início a um movimento de protesto que teve até uma investigação oficial do governo britânico sobre os abusos cometidos.

Celebridades da época, como os também escritores Mark Twain e Arthur Conan Doyle, o criador do detetive Sherlock Holmes, aumentaram o lobby com a fundação da Associação pela Reforma do Congo, uma das primeiras organizações de defesa dos direitos humanos do século 20.

Diante de uma crescente pressão internacional, o parlamento belga decidiu intervir e, literalmente, tomou do rei o Estado Livre do Congo em 1908. Rebatizou a região de Congo Belga e, em comparação com os anos de terror sob os desmandos de Leopoldo II, reduziu bastante as violações de direitos humanos.

No entanto, o trabalho forçado ainda continuaria em algumas regiões até a independência congolesa, em 1960. E embora o segundo período colonial tenha sido marcado por avanços nas áreas de educação e saúde, o parlamento se recusou a abrir investigações sobre as denúncias — uma tarefa que mesmo com boa vontade teria sido inglória depois de Leopoldo II ordenar a destruição de documentos e arquivos relacionados à empreitada.

Ironicamente, Leopoldo II jamais pôs os pés em seu latifúndio nos 44 anos de reinado. Morreu em 1909, e há relatos de que seu cortejo fúnebre recebeu vaias de populares. Sua imagem oficial, porém, ainda é a de um rei empreendedor.

Historiadores, como o americano Adam Hochschild, autor de um polêmico livro sobre a colonização congolesa (O Fantasma do Rei Leopoldo, em tradução livre), afirmam que o legado do rei se beneficiou também de uma conivência coletiva de seus compatriotas.

 

 Crianças belgas brincam com uma criança congolesa, como se fora um animal, preso numa gaiola, em Bruxelas, 1955.

"A Bélgica ainda vive num estado de negação sobre seu passado colonial. Recebi reações negativas de setores mais conservadores da sociedade belga, em especial de representantes dos mais de 70 mil cidadãos do país que viviam no Congo na época da independência.

Ao mesmo tempo, encontrei muitos belgas que queriam ver esse assunto discutido mais abertamente. E meu livro foi best-seller na Bélgica, tanto em francês quanto em holandês", afirma Hochschild.

Intelectuais como Guido Gryssels, diretor do Museu Real, discordam e dizem detectar um desejo de reflexão na sociedade belga. Gryssels aponta para a iniciativa do museu de realizar, em 2005, uma exposição sobre a Era Colonial Congolesa, que teve um tom bem mais crítico que o apresentado pela coleção permanente.

 Fonte: Uol.

Publicação: Aventuras na História